sexta-feira, 30 de março de 2012

AS SEIS CADEIRAS

 

 

            Estou sentada no mesmo lugar, ou seja, na minha cadeira de pensar que, na verdade, é uma poltrona. Sinto-me como se aguardasse algo que não sei do que se trata, mas que é importante. Estou certa de que o inusitado está por acontecer.
            À frente uma extensa mesa, com uma jarra de porcelana ao centro, seis cadeiras vazias e uma paz diferente invadindo o lugar.
            Por uma porta lateral, uma pessoa adentra, vestida de uma túnica acetinada, um capuz que esconde os cabelos e parte do rosto, não me permitindo, num relance, identificar o seu sexo.
            Caminha alguns passos, surge a segunda, a terceira até o número fechar em seis, todas portando roupas semelhantes, porém exibindo nuances de azul do mais escuro ao mais leve. Tomaram seus assentos à mesa, sem titubeios, como se o lugar de cada uma estivesse previamente demarcado. Não se entreolharam e não abriram a boca.
            O que se sentara na primeira cadeira à direita estendeu o braço e me entregou um objeto. Era um caleidoscópio . A cada movimento, imagens e lembranças pululavam em minha mente, como se brotassem de cada faceta. Lembrei-me de um semblante firme, traços definidos, um sorrir discreto. Senti a presença de um amor que foi devotado à esposa paralítica até o último dia de vida, aos filhos a quem orientou e disciplinou no bem. Homem avançado para sua época, inteligente, fez da medicina alternativa o método natural para tratar seus filhos e criá-los com saúde. Amoroso, sem ser efusivo, politizado, integralista por convicção, meu avô paterno me visitou naquele presente.
            Em seguida, a segunda pessoa me entregou uma pirâmide, refletindo em cada face uma cor diferente: fixei-me nos reflexos que se enfeixavam rapidamente. Projetou em mim a imagem de um rosto sereno, olhar cândido e feliz de quem muito amou e se fez amar. Um coração que acolheu e amou a estranhos e lhes devolveu a dignidade como seres humanos. Senti de perto a velha paciência que suportou uma cadeira-cama de rodas, sem queixas e sem gemidos, outrora tão ativa e lúcida, minha avó paterna.
            A terceira veio trazendo uma estrela. Entre um cintilar e outro, senti a presença de um espírito forte, guerreiro, sofredor, mas não vencido. Capaz de narrar um acontecimento passado em sua vida, com cores atuais, repetidas vezes, sem, porém se repetir. Entre as palavras, gargalhadas sacudiam-lhe o corpo pequeno, como se a vida não lhe tivera aberto tantas feridas. Ressaltou-se a força de sua paixão pelo esposo, meu avô materno, que atravessou e venceu o tempo e as tempestades da vida.
            O quarto presente era um dado. Cada ponto negro, à medida que era manuseado, irradiava uma alegria, como a de viver sem igual, que ele carregou até que sua amada faleceu, indo-se ele pouco depois. Um solo de violão, como o que ele tocava, invadiu os ouvidos da alma. Vi seus dedos que feriam as cordas com paixão e destreza e ouvi sua voz que irrompia da abertura central do instrumento, como a oferecer à companheira, o seu melhor. Meu avô materno era leve de sentimentos e como uma pluma pousou no meu coração.
            Os que se haviam manifestado até aquele momento mantinham-se silentes em seus respectivos lugares, como se orassem a Deus, naquele instante tão irreal, como o sonho jamais conseguiria ser.
            Da quinta cadeira alguém se adiantou, portando uma bússola. A cada passo em minha direção, o ponteiro oscilava freneticamente entre os pólos, como se fossem desprender com o movimento, espargindo cores e perfumes, que se sucediam entre o adocicado, o amadeirado e o cítrico. Revi mais que um par de verdes olhos, mas um olhar esperto, especulativo, intenso, capaz de perceber além das evidências e perscrutar mistérios muito além das aparências. O perfume vinha do amor que ela nutriu pelos seus, pelo próximo e em prol dos mais fracos, o amor que ela muitas vezes dissimulou invadiu a todos naquele momento e nos sentimos melhor. Ao norte e ao sul, enxerguei folhas e flores em profusão, como as que ela amava e cuidava; oscilando entre o leste e oeste, senti o calor das chamas do conhecimento que ela buscou tardiamente nos livros e nos estudos, minha progenitora.
            Os outros cinco se deram as mãos enquanto esperavam a oferenda do último mensageiro. Naquela penumbra, não identificara nenhum rosto; sob as luzes intensas, muito menos, mas nada disso interessava. Eis que se aproxima alguém empunhando uma lanterna. Os raios multicores pareciam bailar, como um facho que acompanha um bailarino. Percebi que era o brilho da honradez, da honestidade, da firmeza do caráter desse que foi exemplo de retidão que o acompanhou até o leito de morte. Vislumbrei gestos firmes, decididos, ouvi palavras como a indicar e corrigir passos e de compreensão. Meu coração de filha o reconheceu e reverenciou cada gesto que emanava de sua lembrança.
            Quando quis dizer algo, se levantaram de repente e saíram cabisbaixos, conforme entraram e nada pude perguntar.
            Uma voz gritou meu nome, ao mesmo tempo em que me sacudia para que eu acordasse. Meu filho chegara da rua e me encontrou dormindo naquela poltrona. Esfreguei os olhos para certificar-me onde estava, sem entender o que acontecera. A única novidade eram seis rosas da jarra de porcelana que perfumavam a sala que, segundo meu marido, alguém deixara na porta da sala, sem nenhuma mensagem e sem qualquer identificação. Foi um presente inesquecível para mim, neste dia...

Dora Tavares

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