Já fui mordido por cachorro. Ene vezes. Felizmente tive de tomar vacina anti-rábica numa ocasião apenas. E foi na época em que a vacina era aplicada com várias injeções na barriga. A injeção doía mais que a mordida. Nem por isso peguei raiva (o sentimento, não a doença) dos cães.
Cachorros soltos nas ruas tinham em mim, um moleque também criado solto nas ruas, um protetor ou um alvo. Depois de grande, já ativo resgatador de cães abandonados, volta e meia levava uma mordidinha de brinde, nada grave. Coisas, digo, dentadas, do ofício.
Coices de cavalos, muitos também, quase rotina na minha temporada de sitiante plantador de cebolas na primitiva cidade de Piedade. Sem grana para o luxo de um trator, arávamos a terra com tração animal. Queria ver um desses encantadores de cavalos dos filmes e documentários convencer um cavalo xucro (especialmente mulas) a puxarem placidamente um arado. Era, com razão cavalar, corcovear e coices pra todo lado, especialmente o meu lado das coxas.
Mas minhas lembranças dos cavalos, mesmo assim, são doces e bonitas. Um deles, baio baixinho e troncudo, conhecido na região como derrubador de valentes peões, acalmava-se instantaneamente quando meu filho, então com dois anos, era colocado em seu dorso. Vinha gente de toda região se abismar com a cena. Aquele cavalo, “selvagem” entre aspas, era todo delicadeza com o menininho que se agarrava em sua crina para não cair. E, quando meu filho estava no chão, ele não deixava ninguém se aproximar do garotinho.
A seu modo, o baio era mais pai protetor que eu.
Nunca esquecerei, ainda, quando a égua do vizinho deu cria a uma éguinha manquitola. A acolhi, tratei na mamadeira e só me arrependo de tê-la deixado entrar em casa, o que ela continuou fazendo, já bem grandona, para se aquecer em frente a lareira. Limpar cocô de cachorro é fichinha perto de cagada de cavalo no meio da sala.
De aranhas aprendi a gostar e a não temer desde a infância, quando meu pai me levava para seu pesqueiro em Angatuba. Ali, tinha esses seres em todos os lugares, dentro e fora da cabana. Sei diferenciar as picadas aracnídeas e seus riscos. Quanto maior a aranha, mais dolorida, mas sem perigo. Uma pomadinha resolve. As pequeninas e rajadas podem ser até letais, eu as evitava, claro. Nunca desenvolvi o medo de aranhas, nem, ainda bem, das metafóricas, aquelas que designam os genitais das fêmeas humanas.
Recentemente, tive uma experiência interessante com uma aranha peludona que escolheu o armário de minha despensa para trocar de pele e, dias depois, dar a luz pontinhos pretos cheios de perninhas e vitalidade.
Sumiram a mãe e sua prole, de repente, e minha admiração se fez plena ao descobrir que não sumiram minhas paçoquinhas (meu vício número mil e um) nem meu estoque de biscoitos de polvilho (meu vício número mil e dois). Isso contou pontos a favor das aranhas.
Se fosse o Homem Aranha escondido lá dentro não estaria eu tranquilo em relação a meus docinhos prediletos.
Das cobras, fui vítima apenas uma vez, nadando em uma represa lá em João Pessoa. Era uma coral. Para meu alívio, sem veneno. Morar em praias e restingas de João Pessoa, Salvador e Rio de Janeiro, me tornaram um seguidor da sabedoria prática de pescadores e mateiros: no mar, andar arrastando os pés para espantar arraias e, no mato, andar de botas e com passos pesados para espantar cobras. Cobras são cegas e “enxergam” as vibrações do solo. Se você pisa forte avisando que está vindo, elas fogem.
Aliás, de todos os bichos que conheço, o único realmente traiçoeiro e imprevisível é o bípede humano. Com esse espécime todo cuidado é pouco.
De abelhas enfurecidas (o truque é ficar parado, nada de correr, gente), a carrapatos sugadores (aqui o lance é usar um raminho de vassourinha ou erva de são joão atrás da orelha, os diabinhos grudam no raminho e esquecem sua pele), passando por insetos voadores e sugadores diversos (citronela até que funciona, pero no mucho), fui testado até por macacos sem vergonhas. Morei anos na reserva ecológica de São Lourenço da Serra e os macacos adoravam comer direto nas panelas se a gente deixava as janelas abertas. Um, mais atrevido, me mordeu a mão.
Passando seis meses nas primeiras aldeias mudadas para o Parque do Xingú, nos tempos heroicos dos irmãos Villas-Boas e dos utópicos como o tal do Ulisses aqui, foi que caiu a ficha de vez: terrível mesmo é o pernilongo. Eita, bicho chato. E enigmático.
Qualquer um que não seja bobocamente dominado pelo esteriótipo do índio romanticamente integrado e preservador da natureza (nunca vi, tirando nós, os índios civilizados, ao vivo e a cores, um comportamento mais predador que o dos índios em relação a fauna e a flora) sabe muito bem que a vida na selva é de testar a paciência de um Jó bíblico.
Não pelos perigos da natureza, que isso índio tira de letra. E tira literalmente, tanto que, sabem os geógrafos, quando os portugas predadores chegaram aqui os nativos já haviam acabado com metade da mata atlântica.
Problema são os malditos pernilongos. De todos os tipos, tamanhos e voracidade.
Eles são iguais aos nossos branquelos banqueiros: sugam nosso sangue 24 horas, sem parar.
Um inferno que nem os índios resolveram, com seus 6 mil anos de sociedade estática e comodista e repetitiva. Vão na base do tapinha mesmo ou na fumarenta fogueira.
E nem eu resolvi até hoje, em pleno século dito 21.
Antigamente, quando hippie em Parati, untava minha pele de urucum na tentativa de repelir esses pequenos leviatãs. Conseguia era ficar todo descascado e coçado.
Priscas eras, na Índia, (novamente eu, iludido, não enxergava a crueldade nua e crua grudada e disfarçada na espiritualidade indiana) vi uma solução funcional e nojenta: os saniasis, homens santos, aqueles que perambulam pelados, despreendidos ou mansos psicóticos, cobrem seus cabelos com bosta seca de vaca, repelente natural. Para eles, dá certo. Em mim, repeleria os amigos e musas.
Pano rápido, aqui e agora.
Trabalho em casa, poeta 24 horas que sou, por sobrevivência e gosto. Preferia que fossem seis horas por dia, mas daí não pago os impostos e me enchem de multas e cobranças. O feijão externo impera sobre o sonho interno. Me equilibro na lâmina da faca milenar de Eros e Tanatos.
Minha casa é pequena mas bem bacaninha, com quintal cheio de flores, passarinhos e computador último tipo.
Adoro escrever com pouca roupa, pelado se não estiver esperando visitas.
Os passarinhos citadinos de meu quintal são da geração maquidonald e preferem as frutas que coloco pra eles todas manhãs em vez de caçar os pernilongos.
A única habitante, além de mim, que trabalha nesse sentido é a tetraneta da Genovava, minha lagartixa de estimação.
Só que ela não dá conta dos enxames de pernilongos que atacam minhas partes expostas a sua sanha alimentar.
Daí, encurralado, comprei e muito uso uma raquete elétrica que eletrocuta os invasores.
Putz, prá quê?
Fiquei, como budista, espremido entre minhas convicções e minha prática cotidiana.
Budista não pode matar nenhum ser senciente. Ou seja: qualquer ser vivo, pois todos tem a mesma capacidade de sentir prazer, dor e medo.
E o pernilongo, gostemos ou não, está nessa categoria, como todos os outros que voam, nadam, rastejam ou andam na face da Terra.
Pior é que adoro quando extermino com esses insetos. Plac, plac, bzz, bzz.
Posso estar, budisticamente falando, matando meus antepassados reencarnados.
Pesquisando, meditando e tentando saída para essa escolha de Sofia, dilema ético, não achei nada a favor dos pernilongos.
Eles, em suas mais de duas mil variações, matam (por serem vetores de doenças) cerca de 300 milhões de pessoas em todo o mundo, por ano, malária, dengue etecétera. Nas ilhas do Caribe, século 19, acabaram com todos mamíferos.
O problema é que não são eles, mas elas. Apenas as fêmeas pernilongais nos sugam, e contaminam, o sangue.
Os machos lambem e se alimentam da seiva das plantas, pacificamente.
Como é que eu posso saber se não matei o pernilongo errado para me defender?
Sei lá. É a primeira vez que odeio e ataco um animal, um ser vivo, em toda a minha vida.
Nem ainda consegui resposta para o que serve um pernilongo na cadeia alimentar natural.
Parece que pra nada, exceto seus propósitos de se perpetuar.
Um mistério a ser decifrado, já que surgiram há milhões de ano e continuam aí, como as baratas e as bundudas alienadas dos bebebês televisivos.
Fiz até um poeminha pra essa praga: “Nada sei/sobre a vidinha do pernilongo/que mato, indiferente, na parede/Mas desconfio/Que era a única que ele tinha.”
Epitáfio deles, pedido de perdão meu.
Ulisses Tavares é um pernilongo confuso sobre seu papel no mundo. Coisas de poeta.
Ulisses Tavares (no Facebook)
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