domingo, 11 de agosto de 2013

O PAI

 


Procuro em meus papéis,...
nos baús familiares,
um perdido testamento.


Encontro cartas, provérbios em Esperanto,
pensamentos de Raumsol e a caligrafia de meu pai.
Homem de fé, rezava nos cemitérios.
expulsou demônios em Uberlândia
e alta madrugada enfrentou o diabo
cara a cara em Carangola.


Nenhum dos filhos a tempo o entendeu.
Mas ele, esperantista,
esperava as cartas da Holanda,
as vacas gordas de José
e o fim da Torre de Babel.
Meu pai, cidadão do mundo,
pobre professor de Esperanto
à beira do Paraibuna.


Lia, lia, lia. Havia sempre
um livro em sua mão.
E chegavam missivas
e selos fraternais
-mia caro samideano-
Polônia, China
Bélgica e Japão.


Maçon, grau 33,
letra caprichosa,
bordava atas da confraria,
Falava-nos de bodes e caveiras,
liturgias impenetráveis
e um dia trouxe-nos a espada
que entre os maçons usava.


Aos domingos, à mesa
refestelava-se de Salmos:
lia os mais compridos
ante a fria macarronada,
Mas sua flauta domingueira
apascentava meu desejo
de pecar lá no quintal
e arrebanhava as dívidas
despertas na segunda-feira.


Esteve em três revoluções.
Não sei se dava tiros
e medalhas nunca foi buscar.
Capitão de milícias
aposentado por desacato ao superior
discutia política sem muito empenho.
Votava com os pobres: PTB-PSD.
Tio Ernesto era udenista
e cobrava-lhe rigor.


Levou-me a ver Getúlio
num desfile militar.
No bolso, uma carta
expondo ao Presidente
penosa situação:
injustiças militares,
necessidade de abono
e pedia uma pasta de livros
pro meu irmão.


Isto posto, era capaz de esperar
semanas e meses
sem desconfiar, que ao chorar
ouvindo novelas
da Rádio Nacional
era ele próprio personagem,
porque se, como diz García Marquez,
ninguém escreve ao coronel,
o ditador jamais escreveria ao capitão.


Noivo contrariado,
fugiu com minha mãe
e com ela trocou cartas, que vi,
escritas com o próprio sangue.
Brigou com o carroceiro
que chicoteava uma besta
diante de nossa porta.
E quando a tarde crepusculava,
tomava a filha paralítica no colo
passeando seu calvário pelas ruas
do interior.


Certa vez, como os irmãos
pusessem em mim trinta apelidos
querendo me degradar
chamando-me de “guga”,
“tora”, “manduca” e “júpiter”,
certa noite, notando-me a tristeza
levou-me pro quintal
entre couves e chuchus:
mostrou-me Júpiter, a enorme estrela
e outras constelações; peixes
touros, centauros, ursas maiores e menores
tudo a brilhar em mim
estrelas que com ele eu distinguia
e desde aquela noite
nunca mais pude encontrar.

                                                        AFFONSO ROMANO DE SANT’ANNA


TEXTAMENTOS, Rocco, 1999

Retirado da página de Affonso Romano de Sant’Anna, no Facebook do dia 11/08/13.

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