segunda-feira, 17 de fevereiro de 2014

ELE, ELA

 

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ELE

Entrou no bar como quem adentraria em um saloon, daqueles clássicos, imagem gravada na retina através dos enlatados americanos de bang-bang. Não, não se trata de um cowboy... Talvez alguém com traços tardios de bad boy, crazy boy, precisamente mais aparentando ser um lost boy. Calça jeans, jaqueta de couro. Ai, a jaqueta de couro, tão surrada, usada, mal tratada! Merece uma descrição mais bem feita, mais afeita aos tantos armários onde morou. Uma jaqueta com história, com memória, com marcas e sulcos, com gosto de beijo, de lágrima, de sol, de chuva, de cachaça, de vodca e até de guaraná. Alegre em cada chegada; sentimentos imprecisos nas partidas. O vento... A jaqueta se lembrava do vento, dos tempos das viagens loucas de motocicleta. Mas ela pesa sobre seus ombros, pois a imagem de motoqueiro, agora, é distorcida, reprimida, insanamente desconfortável: o passado não lhe serve mais.

Como dizia no início, entrou no bar como quem desceria de uma moto estacionada à porta, tentando parecer à vontade com a incômoda jaqueta pesando suas lembranças nos ombros cansados e envelhecidos. Os anos pesam em suas olheiras, desbotam seus cabelos ralos, fazem tremer as mãos que denunciam a falta de líquido de gosto e ardor de teor alcoólico.

Sem dirigir palavra a ninguém, andar duro de macho pra caramba, individual pra cacete, autossuficiente pra caralho, dirige-se ao balcão do saloon, digo, do bar restaurado, com ares decô, e pede a bebida transparente, num pequeno copo martelo – clássico, pra quem gosta de destilados fortes. Toma uma, duas, três doses. Vira cada uma delas afoitamente, solitariamente, silenciosamente. Quantos minutos? Impossível precisar, mas, cada um deles – aposta – assemelha-se a uma eternidade. Falta o ar, falta o vento, falta o céu estrelado, falta ela... Ela que ele viu, de soslaio, quando entrou. Ela, tão à vontade no meio de tantos amigos, de risadas, de conversas, de alegria, de vida. Ele, tão morto, alimentando o frio da alma com o calor da bebida, procurando, talvez, em cada gole, mais um minuto de alento pra sua monótona e patética existência.

ELA

Ela o viu entrando. Estava de costas quando ele desceu de um carro branco. Ouviu barulho de porta de carro e olhou, quando deu de cara com ele. Virou-se rápido, voltou a olhar para o interlocutor, companhia fiel no fumódromo ao ar livre – tão moderno e decadente quanto o vício adquirido ao assistir Casa Blanca –, quando viu que ele passava quase ao seu lado, e sentiu aquela aura densa, nervosa. Não tremeu. Não, hoje em dia não treme mais ante sua presença, outrora puro fascínio incontido, sol sustenido nas madrugadas de tesão em desalinho de camas e corpos. Apenas ficou atrapalhada. Ele parecia o mesmo de quando o vira pela última vez, anos atrás. Mentira: ele parecia melhor – ao menos estava asseado e bem vestido. Nem melhor nem pior que antes, quando saíam – fato raro à época da pré-separação.

Sentiu-se invadida. Estava em território próprio e ele, fora de contexto, aquém do texto escrito em acordos abstratos de não invasão. Ela nunca mais frequentou os lugares aonde ele ia. Ele, ao contrário do pré visto, adentrou em seus domínios, quebrando regras, provocando resgates insuspeitos e indesejáveis. Dane-se – ela pensou – afinal, o mundo é um lugar público.

Esperou minutos incontáveis torcendo pra que ele já estivesse acomodado em mesa distante da sua. Quando entrou, de relance o viu, de costas, no balcão do bar, em pé, virando um pequeno copo de um líquido transparente que – ela bem sabia, por experiência e conhecimento – devia ser algo forte, mais forte que a vodca que ela sempre consumia imersa em gelo derretido pra perder o ardor, porém, conservar um suave perfume de bebida que não deixa odor ou hálito denunciante do pequeno delito, qual fada da sorte disfarçada de reflexo nas imagens gravadas, sempre inescrupulosamente reveladas em seus registros – ela sempre carregava a arma fotográfica na bolsa.

Sentou-se de costas – seu lugar de origem, antes que ele chegasse. Alguém perguntou “quem é ele?”: as notícias voam mais rápido que a descarga de um raio. Rápida no gatilho, embora destreinada ultimamente nos quesitos duelo e faroeste, devido à separação de corpos e de fatos, disparou a descrição do traje. A falta de originalidade dos cowboys noturnos fez com que os comentários se perdessem entre três possíveis personagens centrais, embora dois fossem apenas figurantes. Até explicar... Porém, ao contrário do que se esperava, o menos cotado surgia palidamente dos improváveis para o inusitado – figura comum, sem merecimento de menção original ou particular. Esperavam uma surpresa, um escândalo. Ao contrário, o que viram foi alguém anonimamente não incluso em roteiro algum da vida de nenhum dos presentes... Exceto na dela, quem sabe? Não, não mais, no presente pretérito mal passado.

ELES

Ele foi embora primeiro. Talvez por falta de assunto, de amigos, de companhia, de interesses. Matou sua sede de álcool, de ironia, de lugar comum. Retirou-se deixando pra trás seu pálido passado. Ela era apenas alguém no meio da multidão. Aquela que um dia, talvez, ele tenha amado, e continuaria como um nome riscado numa lista interminável de adjetivos próprios de corpos, de casas mal habitadas, de lembranças assombradas, de fotos desbotadas. Não se sabe ao certo que rumo tomou. Dizem, os adivinhadores de mãos e os gurus dos descaminhos, que deve ter ido pra casa. Quem sabe bater uma em homenagem à ela? Procurar outra qualquer que apagasse aquela imagem grudenta, desprezível, equivocada e descartada? Ninguém pode afirmar nada sobre seu destino, naquele resto de madrugada e frio. Não, ninguém o conhece. Rumo improvável nas ruas da cidade quase quieta e mal dormida.

Ela foi pra outro bar. Os amigos, a música, a conversa, as risadas, as surpresas e descobertas, noite adentram. Era quase dia amanhecido quando interromperam a felicidade do encontro entre os iguais, parecidos, partidários e sedentos de vida. Lembrou-se dele e do fato apenas dias depois: as memórias num pretensioso relato sem texto, esperando que o contexto seja real e não somente uma ilusão de quem se sabe esquecida, mais uma mentira contada que carrega na pele a tatuagem de um amor inexistente, colorida mágoa de não se saber amada.

De qualquer modo, as estradas dele e dela não mais se cruzam, nem no infinito, contrariando as leis de geometria, física e matemática; sequer no mundo dos sonhos, das esperanças, das quimeras, tendo em vista que entre todas, ela certificou-se de colocar pedras em obstáculo, pontos finais e tabuletas estampando em letras garrafais (sem conteúdo líquido): “AQUI JAZ”, não sem antes certificar-se que não mais existe ELE, que ELA sorveu entre um gole e outro, boiando inerte e sem queixume, em meio ao gelo derretido de sua vodca semanal.

©Thaty Marcondes

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