O título da crônica deste mês refere-se a um verso de Oswald
de Andrade, um dos nossos mais famosos escritores Modernistas brasileiros. O
poema no qual ele se insere intitula-se “Escapulário” (foi musicado por Caetano
Veloso) e, roga, como proteção divina, a presença da “santa” e poderosa poesia
diária, aquela que nos desenvolve a sensibilidade, a contemplação meditativa, a
fé em nós mesmos, a criatividade e o senso crítico. No entanto, a Geração
Poética de 70 foi duramente criticada justamente por ela ter desmitificado o
fazer poético como a procura do belo inacessível e sublime, abordando assuntos
considerados comezinhos e “prosaicos” (no sentido de triviais), focalizando (e
perdendo tempo com) questões “de somenos”. Este deslocamento radical do altar
em que a veneravam os vates beletristas e suas musas diáfanas para o “rés do
chão” (poesia com os pés no chão, sem sombra de dúvida), fez com que esta
produção fosse desvalorizada e até estigmatizada em nosso país, condenada
principalmente pela temática, como se fôssemos nós a criar esta proposta –
sociologicamente denominada “estética da banalidade” por Maffesoli, que a
analisa com seriedade, por ela ser um componente marcante e presente em todas
as artes contemporâneas. Esquecem os detratores da poesia coloquial de que o
cotidiano apresentado como contraplano contextual não foi inovação do
Modernismo, nem tampouco da Geração 70. Veio muito antes da sociedade de
consumo, recua até os ensinamentos filosóficos do zen budismo (séculos
XIII-XVII, ou até mesmo antes) através dos quais tudo o que acontece na
natureza, em qualquer um dos seus reinos, motiva a reflexão – até mesmo as
moscas pousadas nas mãos de um velho, em Issa, ou uma simples pimenta, em
Bashô:
Bando de moscas –
Que gosto pode haver
Nestas mãos enrugadas?
Issa
Uma pimenta.
Colocai-lhe asas:
Uma libélula rubra.
Bashô
Paladares... Gostos... Alimentos... No Budismo, a atenção
dirigida ao próprio sustento é importante, por ser a comida uma forma de
praticar a não violência, de reverenciar o preceito do ahi?s?, que preconiza não se cometer
crueldades/atrocidades contra outros seres, portanto de praticar a compaixão;
na “cozinha de devoção” (sh?jin ry?ri) japonesa, na cozinha budista (zh?icàie)
chinesa, todos os atos anteriores, durante, e posteriores à refeição são
igualmente significativos e relevantes. Há muitos koans contados a este
respeito. Talvez o mais conhecido deles seja a de um monge que certa vez, na
hora do café da manhã, veio até Joshu (japonês sagrado mestre em idade precoce,
aos treze anos) e disse: – "Acabei de entrar neste mosteiro. Por favor,
ensine-me." – "Você já tomou seu mingau de arroz?", perguntou
Joshu. – "Já, sim", replicou o monge novato. – "Então é melhor
lavar sua tigela", disse o mestre. Esta foi a primeira lição que o neófito
recebeu no mosteiro – simples e objetiva, mas também repleta de sutilezas: a
prática “vulgar” de lavar a louça, do desjejum ao famoso ritual do chá,
reveste-se de transcendência: envolve, para além da limpeza (sua finalidade
imediata), vários tipos de atividades perceptivas, tais como: a observação do
tato em contato com diversas texturas, do entorno, a concentração no
aqui-agora, a reflexão e valorização da nutrição, o agradecimento por ela,
etc.. Ensina o Hexagrama 62 do “I Ching – Livro das Mutações” (texto clássico
chinês anterior à dinastia Chou (1150-249 a.C.): “EXCEDENDO-SE SENDO PEQUENO se
exerce influência. É conveniente insistir, mas só em assuntos restritos e não
importantes. Um pássaro voando deixa sua mensagem: ‘não é apropriado subir, o
certo é descer’; nesse caso haverá grandes benefícios!”. Viver, sem grandes
pretensões, mas equilibrada e intensamente; voar o mais alto possível (sem
chegar muito perto do sol se tiver asas de cera, como Ícaro), e saber quando
pousar para descansar. Transpondo para nosso dia a dia ocidental: nenhuma
tarefa é enfadonha em si mesma, nós é que a rotulamos como entediante.
A filosofia zen mergulha na prática de cada ato simples da
vida para dela apreender o significado da existência em sua unidade. Paulo
Leminski (amigo curitibano e companheiro da minha geração poética) escreveu em
seu livro “Vida”: “Bashô elevou a prática cotidiana, no haicai, a um patamar
altíssimo, a uma arte (haiku-dô). (...) Os pensamentos mais sutis revelam-se
nas condições materiais. E a mais alta poesia, nas circunstâncias mais
pedestres e corriqueiras. Assim, Bashô transformou uma prática de texto, uma
produção verbal, em ‘caminho’ para o zen”.
Nesta dimensão, tendo Bashô e Issa como exemplos, esvazia-se
o argumento pejorativo que amesquinha na poesia a relevância do debate das
questões cotidianas, alijando-as da Estética – do estudo do belo em suas
manifestações artísticas – e da Filosofia – investigação da dimensão essencial
e ontológica do mundo real, segundo Platão, em direção ao entendimento do
Holos: o todo. O “tema central do zen é a superação das dualidades. A
dissolução dos maniqueísmos”; e a poesia alternativa da época rompeu com a
visão separatista do que era ou não tematicamente adequado a ela, ao mesmo
tempo fazendo emergir o microcosmo e transcendendo-o ao mostrar, implícita e
sutilmente nas entrelinhas, que os gestos mais comuns e rotineiros podem ser
celebrados enquanto fonte inesgotável de vivências plenas. Nesta mesma direção,
eis o belo haicai de outro famoso escritor paranaense:
Montanha que brilha
a louça lavada
empilhada na pia
Domingos Pellegrini
A poesia da década de 1970 despertou uma práxis mais
consciente e holística (com maior impacto ainda na escrita das mulheres),
lidando com sentimentos, sensações e emoções não apenas como transbordamentos
individualistas, intimistas, porém inserindo-os no contexto sociopolítico do
nosso tempo. Como explana brilhantemente o ensaio leminskiano, “os sentimentos
são históricos – não dá para abandoná-los no meio do caminho, rumo à trajetória
das transformações sociais”.
Aprendemos na escola que, em poesia, palavras pertencentes à
mesma categoria gramatical são classificadas como rimas pobres – no caso, pias
e poesias. Seriam? Serão? Sejam ou não, parafraseando Oswald, peço contrita e
fervorosa: dai-nos, Senhor, a poesia de cada dia dessas ricas rimas pobres!
Um comentário:
PORQUE DE POESIA VOCÊ É A GRANDE MESTRA, OBRIGADO
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