Há trinta anos morria Clarice Lispector, a escritora que abalou a literatura brasileira pela contundência de sua linguagem que tentava desvendar o mistério da existência com palavras claras e obscuras a um tempo, de grande beleza poética, de inquietação, de perturbação, espanto e maravilhamento. Com dezessete anos de idade escreveu “Perto do Coração Selvagem”, e era como se estivesse surgindo uma obra de gênio. Era como se valesse o adágio: “O gênio nasce feito.” Mas Clarice trabalha incansavelmente. A sua genialidade era uma busca contínua da palavra certa, que clarificasse os escaninhos obscuros do ser.
Comecei o meu conhecimento de Clarice com “A Paixão Segundo G. H.”: é o começo mais difícil, intrincado, um labirinto de luzes que se acendem umas sobre as outras e cegam o leitor. É muita claridade, e claridade entrando-se num mundo de trevas, alcançada com o estupor, com o nojo. É a epifania do ser diante do nojo, o ser se encontra, se descobre diante de outro ser, asqueroso, repulsivo, representado pela barata. Eu sou um mistério para mim mesma, dizia Clarice, e vivia desvendando os véus desse mistério, ofertando-nos a claridade que dele advinha.
Foi no conto que Clarice mais se realizou, nessa arte da síntese que a levou e que ela levou ao âmago da problemática do homem, que se interroga, perplexo, à busca do que ele é em si. “Feliz Aniversário” é o melhor que ela criou, um triste retrato da solidão familiar, no tempo em que ainda havia grandes famílias, no entanto já mal estruturadas. Criou algumas peças notáveis, extraordinárias, mas vou hoje me deter sobre uma quase insignificante, de tão esquecida: “Perdoando Deus”. É bom lembrar esse encontro de Clarice com Deus, ela que, depois de tanto investigar o mistério, já penetrou no Mistério.
É a história de uma personagem que olhava distraída o mar e de repente se sente a mãe de Deus. Como o homem é o que ele escreve, vou dizer sem medo de errar que aquela personagem era Clarice. Quem se sentiu com o carinho de uma mãe pelo filho era Clarice. O interessante, o totalmente novo é que esse filho era Deus. Sabia que se ama a Deus com respeito, medo, solenidade. Mas o carinho maternal por Deus era absolutamente estranho. Assim como o carinho por um filho não o reduz, mas o alarga, diz, assim era maior o seu amor.
Foi quando quase pisou num rato morto. E entrou em pânico, controlando como podia o seu mais profundo grito. Desde o início do mundo sentia um pavor dos ratos, que a devoravam. E era como se Deus lhe lançasse na cara um rato. Ela amando-o com amor maternal, Ele insultando-a com brutalidade. Decidiu, então, vingar-se. Mas descobre que o rato é o mundo. Ela se julgava forte, porque, compreendendo, amava. Descobriu que se ama verdadeiramente somando as incompreensões, que amar não é fácil. É preciso amar primeiro a nossa própria natureza, depois o seu contrário, Deus.
Queremos amar a Deus só porque não nos amamos. É uma espécie de compensação. Conclui: “Enquanto eu inventar Deus, Ele não existe.” Dizem que o homem inventou Deus porque não consegue explicar o universo. Clarice aprende que isso está errado. Como Santo Agostinho, descobre que devemos procurar Deus dentro de nós.
O grande católico Alceu Amoroso Lima diz, dela, que a presença invisível de Deus não se expressa pela invocação do seu Nome, mas que o silêncio pode ser o sinal mais seguro de sua realidade. E conta que Clarice ofereceu-lhe o seu último livro com uma dedicatória, escrita um mês antes de morrer, terminando sua demonstração de afeto com estas palavras claras e decisivas: “Eu sei que Deus existe.”
José Carlos Mendes Brandão
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