terça-feira, 8 de janeiro de 2013

carta para o amado presente na ausência...

 

Meu amado:
Acordo e fico sabendo que hoje, sete de maio, é Dia do Silêncio. Absolutamente sozinha, mas não há silêncio interior.
Dentro de meu self, alaridos, relembrares, cantares e... até gemidos, arfantes gemidos de paixão.
Quando nos encontramos, descobrimos muitas coisas em comum:o gosto por fotografias, viagens, filmagens, música, praia, ar livre, estradas...
Vou à sala e ligo a TV. Na Net, passa um filme "cult": "O Último tango em Paris", que na Ditadura era proibido no Brasil. O livro, deixaram em cima de minha mesa na Gazeta Comercial, onde eu trabalhava, capa dura, páginas em papel ruim, edição clandestina, como muitos que recebi, então.
Li-o escondidamente, pois, mocinha, temia que papai me surpreendesse lendo livro assim"forte". Quando nos casamos, vim morar em Belo Horizonte onde você, engenheiro civil, trabalhava nas passarelas e viadutos da "Via expressa".
A abertura cultural começava. Você levou-me para ver os filmes antes proibidos. Entre eles, O Império dos Sentidos e O Último tango em Paris. Claro, o primeiro,oriental, mostrava situações inusitadas. Lembro de ficar sem graça, ao sairmos, pois a sala de apresentação era freqüentada por homens, na maioria. Como se os filmes fossem pornográficos, não eróticos.
Belo filme,"O Último Tango em Paris", que mostra a crua condição humana perante a condição sexual, suas repressões e liberações. Maria Schneider repete, num dado momento:"É como brincar de adulto sendo uma criança". O amor não é isso? Nosso lado lúdico, esforçando-se para alcançar as esperadas respostas adultas... E quando o filme finda, entre lágrimas, ela nega tudo e se nega. A respeito do amante, exclama: "Eu não o conheço","Eu não sei quem ele é", "Ele é louco" e "Não sei o nome dele..
Os seres humanos vivem essas angústias permanentes.O Outro quer, de si, saber tudo. E todos temos uma bagagem dentro da alma,do coração, segredos... Se todos apenas usufruíssemos a verdadeira alegria cotidiana de estar-com, de estar-para, sem cobrar a dissecação da personalidade e da história do companheiro, seríamos mais felizes...
Você tinha essa sabedoria. Casada de pouco, pois namoramos, noivamos e casamos em três meses, eu quis, como se oferecesse um presente, contar a você sobre meus amores antigos. Você me abraçou e me silenciou: "Chiu... nada que ficou para trás nos importa". E assim foi. Construímos nossa própria história, sem ciúmes, sem canseiras, sem cobranças... sabedoria pura...
Venho escrever. Na sala,a música-tema do filme. Meu coração se aperta, confrange-me. Nas nossas inúmeras viagens, você sempre a colocava para tocar... Linda...
Volto à sala e desligo a Tv. O silêncio se reinstala no espaço.
Dentro de mim, porém, sua voz. Lembro de quando entramos no mar para fazer amor. Quando caminhávamos no Parque das Mangabeiras aqui em Belo Horiznte, você se encantava quando eu imitava os micos e os chamava para lhes dar o pão que levávamos de casa. Homem sério, você se desmanchava de rir com minhas gaiatices, mandava-me imitar o andar das patinhas em Acuruí. Eu as seguia para desenhar e fotografar, enquanto você pescava os seus pacus... O vôo louco das libélulas fogosas...
Com quem vou rir agora?
Com quem vou falar sobre nebulosas, beija-flores, sobre o canto das pedras? Quem vai buscar corujas para minha coleção? Quem vai me mostrar a trajetória das borboletas?
Onde mais vou ouvir seus murmúrios?
Ah, o silêncio se faz absoluto e penso que você está tirando um cochilo dentro de mim... É aí que você vive agora. Você e sua história,você e nossa história... Como disse um personagem "especial" em um filme (...) "Você vive dentro do coração. É um lugar bem grande para se viver"... Quando trouxeram seus pertences, depois do acidente, em sua agenda, na primeira página encontrei um amarelado papel pautado com uma de minhas poesias de amor, manuscrita. Cheirava levemente a gasolina...
E foi assim que eu tive certeza de que eu também ainda estava dentro de seu seu coração, esse lugar grande demais para se viver, onde podemos ser espaçosos, sermos nós mesmos e fazer todos os rumores necessários, cantarmos todas as canção, dizermos todos os versos e sobretudo, falarmos de nosso amor imorredouro...

                         Clevane

N: Tenho de parar de escrever, porque é impossível enxergar sob as cortinas de cristal líquido que toldam meus olhos...
Até um dia...

Clevane Pessoa

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