quinta-feira, 5 de abril de 2012

Recomenda de almas

Meu recente trabalho como pesquisador de Folclore tem que colocado em contato com pessoas ímpares. É gente que faz o que faz porque gosta, porque precisa saciar uma fome da alma; gente em cujas vidas não existe distinção entre o sagrado e o profano.
Domingo passado meu grupo de trabalho foi visitar uma dessas pessoas, dona Mariana, uma pérola escondida na zona rural de Caçapava, SP. Nosso interesse por ela surgiu da necessidade de registrar uma manifestação de fé que vem desaparecendo nos últimos tempos, a “Recomenda de Almas”, também conhecida como “Encomenda de Almas” ou “Recomendação de Almas”, dependendo de onde ela tem lugar. Em resumo, a recomenda de almas consiste em um grupo de pessoas, vestida de branco e carregando uma vela, que durante o período da quaresma reúne-se e sai, altas horas da noite, cantando e rezando pelas almas que padecem no inferno, purgatório ou vagam pelo espaço. Que fique bem claro, este ritual de "Recomenda de Almas" é praticado por católicos.
Curiosa nata, dona Mariana é uma espécie de “antropóloga informal”,  o que, a meu ver, a torna ainda mais interessante. Coincidência ou não, lá pelos nove anos de idade, o primeiro programa que viu na televisão, recém-chegada à sua casa, foi uma emissão sobre índios da Amazônia. Desde então, acalentou o sonho de ir conhece-los em seu habitat natural. Aos vinte e um anos conseguiu realizar o sonho, ela era auxiliar de enfermagem e pegou carona com um médico da Escola Paulista de Medicina, que fazia um trabalho entre os indios no Pará.
Mariana conseguiu autorizações e permissões da Funai e depois de fazer alguns cursos de especialização, começou um trabalho na área de medicina preventiva. Aprendeu o dialeto local e passou a viver entre os indios. Nesta época, conheceu um indio que morava na cidade e os dois se apaixonaram, casaram-se e quis o destino que viessem morar em Caçapava, onde estão há trinta e tantos anos.
Viveram um tempo na cidade e pouco tempo depois mudaram-se para zona rural, neste endereço onde os encontramos, o Bairro da Tataúba (que quer dizer “madeira boa de pegar fogo, na lingua tupi”). Nesta localidade, Mariana descobriu com os antigos, o povo de mais idade, que havia algumas tradições que estavam morrendo, dentre elas a Recomendação das Almas. Mais que depressa, ela anotou todas as rezas deste rito, antes que essas pessoas morressem, pois a tradição era apenas oral e iria desaparecer com a morte dos poucos que a conheciam.
Mariana a não pode deixar de notar a semelhança que havia entre este ritual de encomenda de almas e o que ela tinha vivenciado durante o tempo que viveu nas diversas tribos indígenas no norte do país. O respeito aos mortos e as rezas para as almas eram muito semelhantes. Os índios tem grande respeito pelas almas, chegando mesmo a enterrar os corpos na soleira de suas casas, um modo de assegurar que as almas fiquem por perto dos vivos. Nos dois casos, passam um ano realizando rezas para que as almas se encaminhem ao céu.
Isso tudo incentivou Mariana a reabilitar a tradição na comunidade de Tataúba, o que vem fazendo há mais de 8 anos. Foram as informações sobre este ritual que fomos buscar com Mariana, domingo passado. Como precisávamos do audio das rezas, pedimos a ela que entoasse as mesmas. Mariana vestiu-se
a caráter, colocou um véu branco sobre sua cabeça, acendeu um vela diante de um pequeno altar que mantém em sua sala, compenetrou-se e deu início às ladainhas, lendo as rezas de um caderninho em que havia compilado tudo à mão. Não parecia uma encenação, pelo menos não para mim.
Terminado nosso trabalho, já estávamos indo embora, eu fiquei a sós com dona Mariana por um instante, ela me pegou pelo braço e perguntou baixinho:
— Francisco, você tem alguma parente próxima que morreu recentemente?
Que eu soubesse, não, não tinha ninguém. Ela continuou:
— Pois bem, havia a alma de mulher aqui, agora, enquanto eu rezava, e a figura dela me lembrou você, por isso perguntei. Se você se lembrar quem é, saiba que ela foi bem recomendada.
Eu agradeci, entrei no carro e partimos de volta para São José dos Campos. Não demorou muito, ainda no caminho de casa, recebi uma ligação telefônica me dizendo que minha irmã, que lutava contra um cancer já há mais de ano, tinha acabado de falecer. Eu a vi claramente indo ao encontro da Luz.

Chico Abelha

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