quarta-feira, 8 de agosto de 2012

Palavras em Blocos

Olimpíada, os extremos

Primeiro essa observação quase estapafúrdia: as olimpíadas derivam dos ritos funerários setecentos anos antes de Cristo. Parece um paradoxo: a excelsa celebração do corpo é um contraponto à decomposição do próprio corpo. É a vida se vingando da morte. Todas culturas têm ritos sofisticadíssimos para exorcisar a morte. Seg undo um ditado antigo: os mortos governam os vivos. Segundo os maldosos: alguns governantes já morreram há muito, apenas se esqueceram de deitar o caixão.
Seja como for, a olimpíada é o momento de esplendor da vida. É o momento em que o herói, por um instante, é imortal. Por isto, lhe conferem o ouro - o brilho, a perenidade, a glória. E nós assistimos a isto porque queremos ver a superação de nossas deficiências. Até os deficientes fisicos têm sua olimpíada. Eles, todos nós, nos superarmos através do outro.
Daí que as olimpíadas sejam o momento em que os extremos se encontram, se chocam, se abismam e nos levam às alturas ou nos prostram aterrados. Ali está, por exemplo, aquela coreana lutadora de esgrima. Derrotada. Bastou um segundo para desgraçar-lhe quatro anos de preparação, destruir o sonho com o extasiante ouro olímpico. Ela está sentada com o florete abatido, inútil. Perplexa. A derrota a assombrou. Os juizes dizem que a oponente venceu, que ela tem que sair do pódio. Ela não sai. Fica ali 45 minutos. Destroçada. O estádio inteiro, as televisões do mundo inteiro de olho nela, esperando que assimile a derrota.
Ela tem razão, a derrota é aceitável. Derrota é morte. E ela foi ali pela vida.
E ficamos divididos.
Se as olimpíadas fossem só um festival de vitórias, seria um tédio. Onde a surpresa? O imprevisto? Onde o fracasso? O fracasso nos interessa, nos fascina. O fracasso nos torna novamente humanos.
Às vezes, por um instante, somos deuses. A chinesinha vem, dá aqueles saltos ornamentais fabulosos e temos certeza que ela é de borracha. Não é possivel que um se humano dê tantas piruetas e caia com a precisão de um objeto ou como se fosse uma figura projetada pelo computador. Estamos em êxtase.
Mas vem outra atleta. E parece que está tudo bem, E está. Por enquanto. De repente, ela dá um salto sobre aquela barra de dez centimetros e se estabaca como um mamulengo. Tornou-se um ser humano falível, desprezivel, irremediável. E temos pena dela. Temos pena de nós mesmos. Por um momento fomos deuses. E fracassamos.
As multidões vão aos estádios festivamente, mas estão à mercê desse paradoxo. Mesmo os que parecem olhar desatatendos a televisão num bar ou restaurante estão de olho no acaso. Eles querem testar no outro os seus próprios limites. Quando alguém bate um récorde, me provou que eu posso ir além de mim mesmo. Quando alguém fracassa, me ensinou que eu não sou deus. sou um reles mortal. Sou, como dizia Eça de Queirós - "um pobre homem de Póvoa de Varzim" ou como disse Fernando Pessoa, “="não sou nada, nunca serei nada não posso querer ser nada. À parte isto tenho em mim todos os sonhos do mundo".
Dizem que na Grécia antiga havia quatro instituições que organizavam a vida social: a política, a religião, a poesia e o atletismo. E o herói que recebesse mais prêmios na olimpíada merecia um poema de Pindaro. Certa vez um desses poemas foi eternizado em ouro no Templo de Minerva. Pois bem. Lá vem o Michael Phelps como peito cheio de medalhas. O homem é ouro puro. Destronou uma russa que era campeã de vitórias, e hoje é avó.
Me digam: se eu perguntasse a ele , em plena pós modernidade, se quer um poema, o que ele diria?

Affonso Romano de Sant'Anna

Crônica publicada no Estado de Minas/Correio Braziliense em 5/8/2012, e divulgada no facebook pelo autor

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RETORNO AO PAI

Exigi os teus domingos
e me disseste que não
dias sem cotas pedidos
dias sem lápis na mão
Quis tomar os teus domingos
vida inteira foi um não
maldisse meus ternos pagos
com tua submissão
a meses que terminavam
dentro de outro embutidos
nas cotas de teu patrão

Quis de ti o que deveste
e me disseste que não
sonhei o herói dos domingos
naquela figura tiste
de silêncio e evasão
de vidas tão separadas
de amores na contramão

E embora não conte mais
foi bom ter sido teu filho
caixeiro das Minas Gerais
de Aracitabas e Ubás
de domingos sem poesia
de vida perdida a dias
de morte na solidão

Conheci os teus domingos
agora assumo meu não

  Sergio Campos

Do livro Ciclo amatório, João Scortecci / Chico Moura Editores, SP, 1986

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