segunda-feira, 7 de janeiro de 2013

Itinerário de uma viagem à Alemanha

 

 

Bruxelas, 26 de agosto de 1856
Caro filho e irmãos do meu coração,

          O mês de agosto, que (sabem vocês) é tão funesto à minha felicidade, pela tríplice perda que imprimiu em minha existência, começou este ano mais triste e doloroso do que nunca. O coração confrangido, o espírito sempre abtido pela dilacerante recordação da morte da melhor das mães, eu via aproximar-se o primeiro aniversário do dia que a roubou à minha ternura.
          Vocês haviam pensado que Paris exerceria em mim sua costumeira magia. Pois bem, revi-a com indiferença; tornou-se-me monótona e quase insuportável, à medida que o triste aniversário se avizinhava. O abalo cruel que sacudiu todo o meu ser moral mantém-me ainda incapaz de apreciar, como outrora, a vida intelectual de que se frui nesta Atenas moderna.
          Era-me necessário percorrer novos países, nele haurir novas impressões, sob um horizonte mais amplo, em atmosfera mais livre e, conseqüentemente, mais consentâneas com minhas preferências. Importava-me, enfim, ver uma terra-tipo, cujo aspecto sério e respeitável se impusesse a meu espírito pela riqueza de sua natureza, pelo passado grandioso e pelos costumes ainda patriarcais de seu povo. Vocês vêem naturalmente que me decidi pela velha e poética Germânia, a digna pátria de Leibniz e Kant.
          Propondo-me realizar uma perigrinação ao túmulo de venerável amigo, o sábio e bom Duvernoy, preferi entrar na Alemanha pela Bélgica e sair por Kehl, para ir de Estrasburgo a Montbéliard, onde ele quis ser enterrado e onde sua virtuosa viúva me espera para, após minha viagem à Alemanha, retornar comigo a Paris. Sinto que as emoções dessa visita lutuosa, misturadas às que este triste mês me fez experimentar, me teriam incapacitado de ir além.
          Pelas oito horas da manhã, anteontem, 24 de agosto, fechei minha correspondência do Havre para vocês e, entregando a casa à ciada, tomei, com minha filha, uma carruagem que nos conduziu à estrada de ferro do Norte, verdadeira Babilônia de viajantes indo e vindo de todas as direções da França e do exterior.
          Enquanto eu pagava os bilhetes e cuidava da bagagem, estavas lá, diante de mim, ó filho dileto, tu que te encarregavas outrora dessas tarefas, quando eu tinha a felicidade de viajar com mais dois filhos. Agora, minha diligência substituía a tua, que me envaidecia tanto, quando te contemplava desembaraçado, sério e altivo como um jovem do Norte. Desta tua atividade eu esperava sempre melhores dias para tua mãe...
           O sinal de partida arrancou-me de meus pensamentos. Apresso-me em tomar nossos lugares e, um instante depois, o trem voava sobre os trilhos, deixando apenas o tempo suficiente para contemplar as paisagens que se sucediam, ainda sem interesse, sob nossos olhos.
          Já haviam desaparecido atrpas de nós Amiens, depois Arras, com suas reminiscências históricas, a primeira exibe seus canais, fábricas e linda catedral, a segunda evoca o fantasma ainda vivo de Robespierre. Em Valenciennes, paramos mais demoradamente para jantar e ver melhor a velha cidade em que Clóvis III e Carlos Magno realizaram, em 603 e 771, assembléias gerais.
          O percurso de Paris a Valenciennes pareceu-me monótono e triste, certamente por causa da disposição de espírito em que me encontrava. A imagem adorada da minha mãe seguia-me na mesma velocidade em que eu rapidamente percorria novos países, em qualquer parte do mundo, ou no silêncio do meu apartamento. Em Paris, ajoelhada diante de seu retrato, rezara durantes alguns instantes, e meus últimos pensamentos haviam sido dirigidos a ela e a vocês. A prece foi íntima e ardorosa. Senti no coração que minha mãe aprovava a viagem. Quando desci em Valenciennes, sua sombra me indicou a catedral e me precedeu lá.
          Depois de ter ezado por ela, fomos ver o hôtel de ville, as fortificações e a cidade construída por Vauban. A cidade é muito triste, e o mau tempo contribuiu ainda mais para torná-la assim a meus olhos.
          Na direção da fronteira belga, o campo mudou um pouco de aspecto e começou a me agradar mais. A pouca distância de Blanc-Misseron, última estação francesa, e setenta e duas léguas de Paris, atravessamos o limite que separa do solo francês o território belga.
          Chegando a uiévrain, primeira estação belga, submetemo-nos às corriqueiras formalidades aduaneiras. A fisionomia do interior das casas começa aqui a mostrar-se diversa: o poêle substitui, geralmente, à cheminée da França, e um ar de limpeza reina por toda a parte.
          Como na Inglaterra e em Portugal, experimentei emoções novas, tocando o solo de outro país que não a França; vocês sabem, eu sempre preferi esta nação a qualquer outra depois da nossa.
          Mudamos de viatura para tomar um trem belga, cujos lugares de primeira classe são tão bonitos e cômodos como os da França. As cidades, burgos, aldeias, paisagens, toda essa natureza mais ou menos bela, desdobrando-se rapidamente ante meus olhos, lembrava-me os rápidos momentos de minha felicidade, que infelizmente se esvaíram, pobre de mim! apenas eu começava a apreciá-los.
          Contemplando essas cenas variadas das paisagens que percorria, esforçava-me por mergulhar o espírito no seu passado histórico, a fim de desviar a tristeza que me roía mais vivamente o coração, nesse 25 de agosto.
          Alí esta Boussu, vila louçã, com o castelo que serviu de estada ao jovem Luís XIV, em 1655, quando comandou o cerco de Saint-Ghislain, que caiu em seu poder; aqui, Jemmapes, vaidosa de suas ricas hulheiras, a lembrar a célebre batalha que os franceses, comandados pelo General Dumouriez, ganharam contra o exército austríaco; por toda parte, à minha direita e à esquerda, sucedem-se paisagens interessantes, desenrolando-me uma página dos tempos passados. [...]
          Hoje, caros amigos, escrevo-lhes de Bruxelas, onde desembarquei com minha filha, pelas cinco horas, no cais do Sul. Uma pequena viatura, denominada aqui "vigilante", levou-nos ao Hotel da Rússia, onde nos encontramos instalados em belo e confortável quarto.
          Passou, portanto, o vinte e cinco de agosto! Sinto agora que, deixando-nos atordoar pelo silvo gritante do vapor em grande rapidez e pelos pequenos embaraços da bagagem, desendo aqui e ali, nas diversas estações, para percorrer às pressas uma cidade ou uma aldeia diferente, podemos desafiar melhor esta legião de tristes lembranças, fundeadas mais cruelmente em nosso coração, no aniversário da morte de meu ente adorado!...
          Sinto-me fatigada, e muito! Mas essa lassidão me é salutar. É às custas do físico que o moral talvez ressuscite. O corpo ficou inerte durante muito tempo, durante os combates do espírito e os pensamentos do coração! Agora é preciso que ele se agite, e muito, para ver se poderá restaurar esses dois poderes tão profundamente abalados em mim. Terei sucesso? Vê-lo-emos. Pelo menos vocês tomarão conhecimento dos esforços de minha vontade, para conservar uma existência que lhes é cara. [...]
          Mas é a propósito de Bruxelas que agora quero entreter vocês. Não pudemos julgar esta cidade, com base na parte que percorremos do embocadouro até aqui: este trecho é pouco limpo, ocupado pelo comércio da cidade baixa. Assim, se tivéssemos continuado nossa caminhada passando de um cais a outro, não teríamos conhecido o que há de mais belo e notável em Bruxelas, esta cidade, galantemente ataviada em torno de graciosos bulevares e belos edifícios, é edificada, em parte, sobre uma colina elevada e, em parte, em uma rica campina, atravessada pelos vários braços do Sena, rio pequeno em comparação com os nossos. [...]
          A limpeza das ruas e do exterior das casas logo me deu uma imagem positiva, principalmente logo que percorremos uma parte da cidade alta: as ruas são regulares, ornadas de ricas lojas, lindas casas e belos hotéis. As praças públicas e os passeios cheios de gente, algumas pessoas exibindo muito luxo e elegância, compõem a fisionomia de uma verdadeira capital da Europa.
          Empregamos uma parte do dia visitando os museus de Pintura e História Natural, bem como o Palácio da Justiça. Os primeiros encontram-se no Palácio das Belas-Artes, mais geralmente conhecido pelo nome de "Museu". stá situado ao lado de um Palácio utilizado nas exposições dos produtos de indústria nacional. Nesse momento, há uma muito importante.
          O vestíbulo por onde se entra no Palácio das Belas-Artes tem a forma de rotunda. Notável estátua de Hércules acha-se colocada ao pé da grande escada. Os gabinetes de Física e as ricas coleções de História Natural são de grande importância, assim como os quadros e as esculturas. [...].
          O Palácio da indústria engloba rica coleção de modelos de toda espécie, máquinas e instrumentos. Um dos lados é ocupado pela biblioteca real que possui (disseram-me) 200.000 volumes impressos e quase outro tanto de manuscritos; estes últimos sofreram, como todas as coisas da Europa, as mudanças dos vencedores, desde o Marechal de Saxe e Dumouriez, até Napoleão I, que restituiu uma parte.
          O Hôtel de Ville atraiu bem mais nossa atenção. É um velho edifício que oferece, ainda, apesar das devastações sofridas, uma parte de sua antiga magnificência. Entre as salas suntuosas, a graciosa mulher que no-las mostrava destacou aquela onde os antigos estados de Brabante tinham suas assembléias. Distingue-se pela riqueza e lembranças históricas. Mostraram-nos as chaves douradas, apresentadas a Napoleão quando de sua entrada em Bruxelas, cuja visão suscitará em todo viajante filosófo idéias sérias sobre o nada da grandeza humana. [...]

Nísia Floresta Brasileira Augusta

Do livro: Escritoras Brasileiras do Século XIX, vol. 1, 2ª ed., org. Zahidé Lupinacci Muzart, Editora Mulheres, 2000, EDUNISC/SC

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