Fotografei uma foto da casa de Portinari. Depois saí à rua e fotografei duas vezes a casa mesmo, a casa em carne e osso. A primeira ficou uma boa foto, como se fosse a casa real fotografada. Mas foi preciso fotografar duas vezes, para ter certeza, a casa em carne e osso, a casa como a alma de Portinari.
É emblemático. A casa conserva a alma do pintor. As fotos dizem pouco, quase nada. É preciso entrar na casa, esbarrar nos móveis, nos objetos, nos utensílios... Lembrar, com Drummond, que as almas penadas esbarram nos móveis. Você sabe que não há almas penadas vagando por aí, muito menos ali, mas a alma de Portinari está presente. Ela esbarra em você, guia seus olhos, suas emoções.
Você esbarra nas telas, nas pinturas nas paredes, nos pincéis, nos tubos de tinta. Ah, não é bom falar em tubos de tinta: você se lembra dos versos de Portinari no fim de um pequeno texto em prosa:
“A morte será colorida?
De que cor será a outra vida?”
Você se lembra, com dor, que o artista morreu de amor à sua arte. De obsessão pela sua arte. Já prevenido de que não deveria abusar das tintas, depois de sofrer grave intoxicação, não parou de pintar. Tinha uma encomenda de vários quadros, tinha a obsessão da criação, precisava criar, custasse o que custasse, até a própria vida. A arte matou-o.
A casa está lá. Logo na entrada a sua pintura de “São Jorge e o dragão”, acima de uma porta, e o poema explicando-a. Explicação ingênua, com a cor e o espanto da infância. Depois, um quarto com seu livro, seus poemas nas paredes, coloridos, com a cor e o espanto da infância.
Os seus versos são capengas. Era um extraordinário pintor, não um poeta. Lembro-me, quase malvadamente, de um conto de Agustina Bessa Luís. Basta o título: “Apenas um poeta manco”. Candinho era o poeta das tintas. Com as tintas não mancava. Era o poeta da cor, das formas leves, que pairavam no ar. Pintava o sonho. Com que graça pintava o sonho!
Construiu no quintal a “Capela da Nonna”. Pequenina, para caber apenas a sua nonna. O Coração de Jesus e o Coração de Maria à frente. Dos lados, o anjo Gabriel e Santo Antônio, São Francisco, São Sebastião. Leves. Candinho conhecia a religião da leveza. As cores claras, as formas nítidas, leves. Candinho pintava a paz.
Na Igreja Matriz de Batatais, ali perto da sua Brodósqui, Candinho pintou seis belos murais. Deixou o Deus cruel para os renascentistas, que tinham o fogo do inferno na garganta e serpentes peçonhentas nos olhos. Candinho pintou figuras leves. Inventou a religião da leveza. A religião no tempo dele ainda era pesadona. Não a dele. As figuras pairavam no ar, como se estivessem em êxtase. A “Fuga para o Egito” ou “Jesus carregando a cruz”. José e Maria deveriam estar cansados, abatidos, apavorados. Cristo deveria estar sofrendo uma dor imensa. Quando Candinho pinta, estão mais leves do que se estivessem em êxtase.
Não que Portinari não pintasse a dor. Diante da tela “Os retirantes”, no Masp, quase sentia os ossos daquelas figuras doídas estralando, quase sentia respingar sangue por cima de mim. Mas as figuras religiosas Candinho pintou com leveza. Candinho é o menino dos sonhos leves da sua infância. Como se um anjo o carregasse nos braços, como se um anjo guiasse suas mãos para pintar o sonho. Leve, aéreo, celeste. Celestial.
Mas eu não quis falar de uma sala da casa de Portinari. O seu estúdio. É o lugar mais triste da casa. Vejo Candinho que se afasta, com o pincel em punho. Apóia-se numa perna, ergue o pincel, e mede a tela. Mede uma figura invisível na tela. Candinho é uma figura invisível no estúdio vazio. Candinho faz uma falta danada no estúdio vazio.
O estúdio é o lugar mais triste da casa. Candinho não está lá. Falei que a casa conserva a alma de Portinari. Mas o estúdio está frio demais. Sem cor. Há cor em todos os cômodos da casa. Menos no estúdio. Lembro, com dor no peito, os versos de Portinari:
“A morte será colorida?
De que cor será a outra vida?”
José Carlos Mendes Brandão
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