quarta-feira, 11 de janeiro de 2017

CHEGADA A SANTARÉM


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Eram as últimas horas do dia quando chegamos ao princípio da calçada que leva ao alto de Santarém. A pouca freqüência do povo, as hortas e pomares mal cultivados, as casas de campo arruinadas, tudo indicava as vizinhanças de uma grande povoação descaída e desamparada. O mais belo contudo de seus ornatos e glórias suburbanas, ainda o possui a nobre vila, não lho destruíram de todo: são os seus olivais. Os olivais de Santarém, cuja riqueza e formosura proverbial é uma das nossas crenças populares mais gerais e mais queridas!... Os olivais de Santarém lá estão ainda. Reconheceu-os o meu coração e alegrou-se de os ver; saudei neles o símbolo patriarcal da nossa antiga existência. Naqueles troncos velhos e coroados de verdura, figurou-se-me ver, como nas selvas encantadas do Tasso, as venerandas imagens de nossos passados; e, no murmúrio das folhas que o vento agitava a espaços, ouvir o triste suspirar de seus lamentos pela vergonhosa degradação dos netos...
            Estragado com os outros, profanado como todos, o olival de Santarém é ainda um monumento.
            Os povos do Meio-Dia, infelizmente, não professam com o mesmo respeito e austeridade aquela religião dos bosques, tão sagrada para as nações do Norte. Os olivais de Santarém são exceção: há muito pouco entre nós o culto das árvores.
            Subimos, a bem trotar das mulinhas, a empinada ladeira - eu alvoroçado e impaciente por me achar face a face com aquela profusão de monumentos e de ruínas que a imaginação me tinha figurado e que ora temia, ora desejava comparar com a realidade.
            Chegamos enfim ao alto: a majestosa entrada da grande vila está diante de mim. Não me enganou a imaginação, grandiosa e magnífica cena!
            Fora-da-vila é um vasto largo, irregular e caprichoso como um poema romântico; ao primeiro aspecto, àquela hora tardia e de pouca luz, é de um efeito admirável e sublime. Palácios, conventos, igrejas ocupam gravemente e tristemente os seus lugares, enfileirados sem ordem aos lados daquela imensa praça, em que a vista dos olhos não acha simetria alguma; mas sente-se na alma. É como o ritmo e meditação dos grandes versos bíblicos que se não cadenciam por pés nem por sílabas, mas caem certos no espírito e na audição interior com uma regularidade admirável. 
            É tudo deserto, tudo silencioso, mudo, morto! Cuida-se entrar na grande metrópole de um povo extinto, de uma nação que foi poderosa e celebrada, mas que desapareceu da face da terra e só deixou o monumento de suas construções gigantescas.


Almeida Garrett (1845)
Do livro Viagens da minha Terra, Lisboa, 1910, vol. II, in Nova Antologia Brasileira, or. Clóvis Monteiro, F. Briguiet & Cia. Editores, 10ª ed., 1961, RJ

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