quinta-feira, 29 de novembro de 2012

Pipoca na manteiga

 

Quando passo pelo local onde se erguia a loja, fico cheia de passado. Daí, falo comigo: largue o passado no passado, dele, hoje, apenas os brechós se alimentam. Sorrio diante da bobagem do pensamento.
Eis que a lembrança de um perfume distante surpreende meu olfato. Olfato também tem memória. Cheiro de pipoca na manteiga...era o aroma da Sears, sua marca registrada.
Tudo o que se queria, por lá se encontrava, ou bem à vista ou meio às escondidas. Minhas visitas eram como as de um garimpeiro, busca que busca, mexe e remexe... assim eu sempre saía com uma sacolinha, mesmo que apenas comprasse um batom ou um par de meias coloridas.
O setor mais gostado, na verdade a minha paixão, era o dos casacos. Na época, São Paulo inda se fazia muito fria e as cores, os modelos, os tecidos eram lindos, aqueciam o corpo, a alma. Poucos deles eu trouxe para casa, outros tantos trago no que me resta de memória.
Talvez as raras oportunidades de adquirir um bem de maior valor, contribuíssem para o aumento do magnetismo local. A dificuldade, ou a impossibilidade, muitas vezes, infla a tendência, redobra o desejo.
Hoje, nem o perfume requintado do Iguatemi, nem suas vitrinas milionárias preenchem a ausência das araras da antiga loja, tampouco me trazem de volta o brilho dos olhos e a alegria de comprinhas à toa, as que me permitiam levar do lugar um pouco do encantamento.
Quanto ao aroma, no Iguatemi: Armani, Givanchi, Dior e tantos outros bailam pelo ar.
Do cheirinho de pipoca, hum...somente uma amanteigada lembrança.

Maria da Graça Almeida

quarta-feira, 28 de novembro de 2012

SEU MOÇO, TUTANO, MEU NEGRO

 

Aonde vai: Que saiba, estará alforria
   Onde está? Que caiba, a fantasia
Abolido de todos os espaços
   Que aí sapuca o desfile
Pra encher o coração
   Quando pouco for o bastante
Quando muito é pouco
   De sermos o mesmo que é
Que a bem dito, salva a dor
                  Com arte
          Minh'Alma pede palma
                 Encarte
           Café, cana, tudo pelo ourinho
                 Descarte
A ideia que o comprou
   Pra que não posta seja a venda
Que o suor da raça transformou
   Se para trás ficou moendas em moinhos
Nexo, por meio, dos fins coloniais;
   Qual libertas, que será também
Agregados em tempos ainda tão bestiais
   Vem zumbido à memória
De história e alvoroço
   É seu moço, tutano, meu negro
O que fica, que se espalha
                 Valha
A bica derramada
                 Calha
A pedra com a mão
                 Talha.

          José Carlos dos Santos Ignácio
Do livro: Verde, amarelo, claros, Massao Ohno Editor, 1987, SP

segunda-feira, 26 de novembro de 2012

Rubens da Cunha e Rogel Samuel: boas leituras em Blocos!

 

NATURAL NÃO NATURAL

 

Sartre dizia que “escrever não é viver, nem tampouco se afastar da vida para contemplar, num mundo em repouso, as essências platônicas e o arquétipo da beleza, nem deixar-se lacerar, como se se tratasse de espadas, por palavras desconhecidas, incompreendidas, vindas de trás de nós: é exercer um ofício. Um ofício que exige um aprendizado, um trabalho continuado, consciência profissional e senso de responsabilidade”. Esse pensamento de Sartre retira do ato de escrever, sobretudo literatura, qualquer glamourização romântica da inspiração, qualquer superioridade que alguns pensam haver no ato de escrever.

Claro, é preciso contextualizar o texto de Sartre, escrito logo após a Segunda Guerra, não fazia sentido para o filósofo um mundo em que o escritor fosse um sofredor romântico, ou um autoexilado existencial, ou um sujeito captador das belezas etéreas advindas da inspiração. O escritor tinha que ser ativo, participante, ou, nas palavras de Sartre, engajado. Sua escrita devia estar anexa ao tempo em que vivia e não num passado mítico, ou nas alturas metafísicas do sentimento, das coisas do espírito. O escritor não poderia se colocar acima ou afora da realidade cortante que perpassava o mundo naquela década, sempre tendo como foco a liberdade, pois, para o próprio Sartre, a literatura é o exercício da liberdade.

Tratar a escrita como ofício, como trabalho contínuo, talvez seja a melhor parte desse pensamento de Sartre, pois desmonta um pouco o mito do escritor inspirado, do escritor xamânico, recebedor do mistério da arte. Talvez isso funcione para alguns, mas mesmo esses possuem um esforço laborativo por trás.

Quando falamos em inspiração, nos colocamos, muitas vezes, dentro desse terreno pantanoso do talento, do “dom natural”, algo atribuído pela “natureza” do indivíduo que ele pode desenvolver ou não. Outro artista revolucionário, o dramaturgo Bertolt Brecht dizia que não há nada natural, pois a “natureza” serviu, e serve, para explicar e justificar uma série de atrocidades, sobretudo no que tange às etnias e às classes sociais: era natural que negros fossem escravizados, é natural que pobres sejam explorados pelo capitalismo, é natural que o mundo seja controlado por homens brancos e heterossexuais, enfim, a ideia de natureza justificou muita coisa perniciosa. E continua justificando, pois ao se deixar a coisa no campo do “é natural”, a possibilidade de mudar, de enfrentar o problema fica mais difícil.

Quando Sartre clama pelo senso de responsabilidade dos escritores, ele deseja, justamente, que a ideia natural de “inspiração” não atrapalhe a consciência do escritor, não o torne um ser suscetível a ideias vindas das musas, mas que ele atue sobre seu tempo, escreva com responsabilidade e empenho, que faça da sua escrita um instrumento real de transformação das insensibilidades, das injustiças, das coisas todas que atrapalham a vida humana e que não têm nada de natural.

Rubens da Cunha

Leia mais textos de Rubens da Cunha em: http://www.blocosonline.com.br/literatura/prosa/colunistas/rcunha/rcindex.htm

(imagem retirada do site: http://planetasustentavel.abril.com.br/blog/planeta-urgente/como-o-islamismo-ajuda-a-reconstruir-clima-do-passado/

 

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A paisagem além da vidraça

Depois de reler um livro antigo fiquei disponível para minhas leituras de Natal, meus poetas de Ano Novo: como tecer um texto novo sem consultá-los? Como não reler Fernando Pessoa?

Natal… Na província neva.
Nos lares aconchegados,
Um sentimento conserva
Os sentimentos passados.

Coração oposto ao mundo,
Como a família é verdade !
Meu pensamento é profundo,
Estou só e sonho saudade.

E como é branca de graça
A paisagem que não sei,
Vista de trás da vidraça
Do lar que nunca terei !

Depois de reler um livro antigo fiquei disponível para minhas leituras de Natal, meus poetas de antigos Natais:

Natal… Na província neva.
Nos lares aconchegados,
Um sentimento conserva
Os sentimentos passados.

Natal festa em família dos “lares aconchegados”. Natal onde ressurgem os “sentimentos passados”, de infância, de criança, de união.

Pessoa é tão atual quanto o desfazer-se dos lares, dos laços familiares, a solidão pós-moderna. Pessoa fala por nós: a família é coisa distante, afastada, é um sentimento passado.

Coração oposto ao mundo,
Como a família é verdade!
Meu pensamento é profundo,
Estou só e sonho saudade.

Afinal o texto se opõe ao mundo: como a família lhe parece verdadeira, ou seja, como ela é real, como ela não se apaga. O sentimento profundo vem das profundezas do subconsciente, da mãe primordial inarredável, só em sonho presente nessa solidão natalina – “estou só e sonho saudade” – saudade só no solipsismo desse sopro desses “SS” – uma respiração do poema e seu suspiro profundo, materno: “coração oposto ao mundo” é o seu conflito e isolamento, o poeta não está “nos lares aconchegados”.

E como é branca de graça
A paisagem que não sei,
Vista de trás da vidraça
Do lar que nunca terei!

Mas a paisagem também lhe é desconhecida, apesar de “branca de graça”. “Branca de graça” soa nesses “AA” invernais, a paisagem é branca porque não há nada nela, porque afinal ela-mesma nem existe, e por isso é tão cheia de graça, tão pura, tão limpa, tão infantil, pois o lar não o teve nem nunca o terá.

Natal… Na província neva.
Nos lares aconchegados,
Um sentimento conserva
Os sentimentos passados.

Coração oposto ao mundo,
Como a família é verdade!
Meu pensamento é profundo,
Estou só e sonho saudade.

E como é branca de graça
A paisagem que não sei,
Vista de trás da vidraça
Do lar que nunca terei!

                              Rogel Samuel

Leia mais textos de Rogel Samuel em: http://www.blocosonline.com.br/literatura/prosa/colunistas/rsamuel/rsindex.htm

Imagem retirada do site: http://tercodoshomensdecaico.blogspot.com.br/2011_12_01_archive.html

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  Falecimento de Gregório de Mattos (1695, Recife/PE)

domingo, 25 de novembro de 2012

Presos que lerem Dostoiévski terão pena reduzida em comarca de SC

 

Projeto da Vara Criminal de Joaçaba prevê redução de quatro dias da pena. Proposta consiste na distribuição e leitura dos livros pelos apenados.

 

Detentos voluntários receberam um exemplar do livro, acompanhado de um dicionário (Foto: TJSC/Divulgação)

Detentos voluntários receberam um exemplar do livro,
acompanhado de um dicionário
(Foto: TJSC/Divulgação)

Um projeto da Vara Criminal de Joaçaba, no Oeste de Santa Catarina, prevê a redução de até quatro dias na pena de detentos que lerem obras clássicas, de autores como Fiódor Dostoiévski. A proposta, chamada 'Reeducação do Imaginário', é coordenada pelo juiz Márcio Umberto Bragaglia e iniciou na manhã desta sexta-feira (23). 

De acordo com o Tribunal de Justiça (TJ) do estado, a proposta consiste na distribuição dos livros aos apenados da comarca. Posteriormente, magistrado e assessores vão realizar entrevistas. "Os participantes que demonstrarem compreensão do conteúdo, respeitada a capacidade intelectual de cada apenado, poderão ser beneficiados com a remição de quatro dias de suas respectivas penas", explica o TJ.

Apenados receberam o livro na sexta-feira (23), em Joaçaba (Foto: TJSC/Divulgação)

Apenados receberam o livro na sexta-feira (23),
em Joaçaba (Foto: TJSC/Divulgação)

“O projeto visa a reeducação do imaginário dos apenados pela leitura de obras que apresentam experiências humanas sobre a responsabilidade pessoal, a percepção da imortalidade da alma, a superação das situações difíceis pela busca de um sentido na vida, os valores morais e religiosos tradicionais e a redenção pelo arrependimento sincero e pela melhora progressiva da personalidade, o que a educação pela leitura dos clássicos fomenta”, explicou o juiz Bragaglia.

O primeiro módulo prevê a leitura de 'Crime e Castigo', de Fiódor Dostoiévski. No segundo módulo, os apenados devem ler 'O Coração das Trevas', de Joseph Konrad. Depois, estão previstas obras de autores como William Shakespeare, Charles Dickens, Walter Scott, Camilo Castelo Branco, entre outros. Os livros serão adquiridos em edições de bolso, com verbas de transação penal destinadas ao Conselho da Comunidade.
Na manhã de sexta (24), os participantes do projeto, todos apenados voluntários do Presídio Regional de Joaçaba, receberam uma edição de 'Crime e Castigo', acompanhada de um dicionário de bolso. As avaliações estão previstas para ocorrer após 30 dias. Ainda conforme o TJ, o projeto tem o apoio do Ministério Público de Santa Catarina.

http://g1.globo.com/sc/santa-catarina/noticia/2012/11/presos-que-lerem-dostoievski-terao-pena-reduzida-em-comarca-de-sc.html

Domingo, Kosby, Rogel, Gonçalves e Blocos!

 

Nascimento de Zé Rodrix (1947, Rio de Janeiro), Adilson Luiz Gonçalves

Informações culturais

MinC cria colegiado voltado a políticas públicas de fomento à cultura do segmento

Literatura

Poesia

Temática terceira idade: Ana Laura Kosby

Prosa

Coluna quinzenal de Rogel Samuel

Teatro

VIII Festival Brasília de Cultura Popular e II Festival Brasileiro de Teatro de Terreiro

domingo, 18 de novembro de 2012

No silêncio da noite

 

“antes que o dia arrebente
(Soy loco por ti América)

Todo dia ela regava as flores mortas: margaridas, monsenhores, brancas, amarelas, quase podres.
Com cuidado e emoção. Depois vestia a camisola de renda esperando a chegada que não acontecia, o telefonema esquecido, o celular mudo na varanda, sob o céu estrelado de verão.
Inverno passou, primavera, lilases,
Flores do campo enfeitando a volta.
Toda noite dormia com a janela aberta, enfeitada de céu, cortinas voando inúteis.
Acordava com os galos, tomava o café ansiosa, olhando a estrada

Soy loco por ti América, o fogo de conhecê-la, de conhecê-lo... antes que o dia arrebente

Lavava a louça devagar, a espera é vagarosa como óleo. Passava o pano na pia, lustrava móveis, espanava, varria.

Janela emoldurava a estrada longa, o céu azul.

Regava as flores num ritual pesado. Horas passavam atropelando minutos, segundos, cheiros, perfumes.
Apanhava o baralho e lia a sorte: ele vai voltar.

Com a esperança renovada, tomava banho, lavava o cabelo, pintava cuidadosamente as unhas vermelhas e longas (ele gostava)
Depois o blush, o batom, contorno nos olhos.

E o vestido amarelo (seu preferido).

Lentamente, envelhecia sem sentir, regava as flores murchas, abria os armários empoeirados, esfregava, limpava, olhava a estrada vazia.

Soy loco por ti América... do fogo de conhecê-lo

As estrelas brilhavam quando ele chegou. Acordou assustada, o vento batia as janelas, porta se abriu de repente.

Entrou, sentou na mesa, pediu comida.

Ela foi preparar com o sol nos dentes, enjoada de vida. As flores se abriram devagar como seu coração.
Jogou água na panela e olhou a estrada longa.

Do fogo de conhecê-lo

Ajeitou o cabelo no espelho, passou batom, sorriu.
Esperou ele acabar de comer para enfiar a faca.

Antes que o dia arrebente
Do fogo de conhecê-lo

Maria Helena Bandeira

sábado, 17 de novembro de 2012

TELEVISÃO

 

Silêncio!
É hora de velar a tela.
De ver a imagem,
miragem.

Silêncio!
É hora de velar
o ataúde
com os seus mortos falantes.
Silêncio!
É hora de assistir
ao jornal.
Feche o livro,
encerre o riso,
fale apenas no comercial.

Silêncio!
É hora do beijo final.
A pipoca está sem sal...
Mude de canal.

                         Ivan Santtana

Do livro: À margem de mim, João Scortecci Editora, 1996, SP

sexta-feira, 16 de novembro de 2012

LAVADEIRAS

 

A roupa nos varais panda flutuando,
com seus laivos de anil coando a brisa,
até parece ávida nau cortando
o mar azul que a leve espuma frisa.

O vento timoneiro vai guiando
e o sol nas bolhas de sabão se irisa
enquanto as lavadeiras vão cantando
a torcer e a bater na tábua lisa.

Cantilenas nostálgicas e antigas,
fados, solaus, que falam da cachopa
da Póvoa, dos amantes, das amigas.

E se perdendo no ar das tardes calmas,
enquanto as águas vão lavando a roupa
essas cantigas vão lavando as almas...

          Luiz Bacellar

Do livro: "Frauta de Barro", Valer, 6ª ed., 2005, Manaus/AM
Enviado por Rogel Samuel

quarta-feira, 14 de novembro de 2012

O senhor é arqueólogo?

 

Ontem à tarde fui fazer uma entrevista com uma senhora que eu conhecia apenas por telefone, mas que tinha se revelado uma informante promissora para minhas pesquisas de folclore. Fazia um sol de rachar e eu não via nenhuma sombrinha para deixar o meu fiel companheiro de viagem, um celtinha 2006. Eu já tinha dado duas voltas no quarteirão quando avistei a placa de um lava-rápido mambembe, que normalmente eu nem pensaria utilizar. Sem muita opção, resolvi arriscar e deixei o carro nas mãos do rapaz que me prometeu o carro limpo e aspirado em duas horas.
Minha informante, que aqui chamarei de Rosa, é uma sexagenária muito simpática e que trabalha em uma instituição de inclusão social que forma menores das classes menos privilegiadas. Ela me recebeu em sua sala de trabalho e lá conversamos durante mais de duas horas.
Rosa teve uma infância rural, na qual vivenciou praticamente todos os costumes, tradições e festas folclóricas que são objeto de minhas pesquisas hoje. Com visível emoção, ela falou dos Catiras, dos Cateretês, dos São Gonçalos, dos terços cantados e da alegria que eram os mutirões de trabalho, costumes e festejos que estão quase extintos e hoje só encontram espaço em livros e espetáculos folclóricos. Por insistência minha, revelou receitas de remédios antigos, tais como o imbatível leite ferrado, um levanta defunto que sua mãe e avó preparavam contra lombrigas e a poderosa arruda queimada, que era tomada pelas mulheres recém-paridas, para limparem o ventre. Com carinho e saudosismo, Rosa me abriu sua vida e teria continuado a falar se eu não tivesse que sair para outro compromisso.
Nos despedimos, prometi voltar quantas vezes fosse necessário para que ela me contasse tudo que sabe e fui pegar o carro, que ainda não estava pronto.
Tive que esperar mais uns 20 min e aproveitei este tempo para conversar com o rapaz, o Célio, que se esmerava em dar os últimos retoques no celtinha.
Célio adora tudo que se refere a carros e quer montar uma oficina mecânica junto ao lava-rápido, que também faz as vezes de bar e vende cerveja, geladinho e refrigerante, segundo anuncia uma placa mal com erros de grafia, afixada em uma geladeira azul caindo aos pedaços. Célio é muito observador e curioso. Antes de me entregar a chave, fez questão de me mostrar que colocou de volta tudo que tirou do carro para poder limpa-lo. Junto com a chave, me
jogou a pergunta:
— O senhor é arqueólogo?
Fui pego de surpresa. Arqueólogo? À partir de que ele tinha deduzido tal
coisa?
— De onde você tirou essa conclusão?
— O seu carro tava muito empoeirado.
— Mas o que tem a poeira a ver com arqueologia?
— Não, é que eu vi uns "panfletos" no seu bagageiro, que pareciam de arqueologia. Daí eu juntei com a poeira das escavações.
Eu nem me lembrava mais o que havia no meu bagageiro. Sei que guardo ali o triângulo de segurança, que é de lei; sacolas e caixas de papelão para acondicionar as compras e também uma bota reforçada, caso eu precise andar pelo mato. Mas que papéis seriam esses que ele viu? Tive que abrir o bagageiro para descobrir que ali estavam, esquecidos, alguns livros de folclore. Demorei alguns segundos tentando entender a conexão que Célio fizera entre o folclore e a arqueologia e quando a ficha caiu eu me rendi à evidência. Claro, num mundo urbanizado e repleto de tecnologia, as imagens nas capas dos meus livros, para o Célio, certamente eram equivalentes às de um dinossauro pré-histórico. Para não deixar o rapaz sem resposta, comentei:
— É, nunca tinha visto por esse angulo, mas de uma certa forma você tem razão, eu sou uma espécie não convencional de arqueólogo.
Dei 5 reais a mais para o Célio, mais pelo insight que ele me deu do que pela limpeza, que deixou um pouco a desejar. Não tinha rodado ainda nem um quarteirão, ao consultar o relógio do carro percebi que ele não tinha tirado a poeira do painel dos controles. Por causa do reflexo do sol, que batia justamente neste ponto do carro, tive que usar um papel para tirar a poeira e poder ver as horas. Tenho horror a chegar atrasado!

Chico Abelha

http://www.blocosonline.com.br/home/index.php

terça-feira, 13 de novembro de 2012

Descrição de minha viagem de Lisboa para fora de Portugal

 

Saímos de Lisboa com mais um navio pequeno, que também pertencia ao nosso capitão, e aportamos primeiro a uma ilha, denominada Ilha de Madeira, que pertence a El-rei de Portugal, e onde moram portugueses. É grande produtora de vinho e de açúcar. Ali mesmo, numa cidade chamada Funchal, embarcamos mantimentos.

Depois disso, deixamos a ilha em demanda da Barbaria, para uma cidade chamada Cape de Gel, que pertence a um rei mouro, branco, a quem chamam Sherife. Esta cidade pertencia, outrora, a El-rei de Portugal; mas foi retomada pelo Sherife. Nela pensávamos encontrar os mencionados navios que negociam com os infiéis. Chegamos e achamos, perto de terra, muitos pescadores castelhanos, que nos informaram de que alguns navios estavam para chegar, e ao afastarmo-nos, saiu do porto um navio bem carregado. Perseguimo-lo, alcançando-o; porém a tripulação escapou nos botes. Divisamos então em terra um bote vazio que bem podia nos servir para abordar o navio aprisionado, e fomos buscá-lo.

Os mouros brancos chegaram então a cavalo, a protegerem o barco; mas não podiam aproximar-se por causa dos nossos canhões. Tomamos conta do navio e partimos com a nossa preza, que consistia em açúcar, amêndoas, tâmaras, couros de cabra e goma arábica, que levamos até a Ilha de Madeira, e mandamos o nosso navio menor a Lisboa, a informar a El-rei e receber instruções a respeito entre os proprietários. El-rei nos respondeu que deixássemos a preza na Ilha e continuássemos a viagem, enquanto Sua Majestade deliberava sobre o caso.

Assim o fizemos, e navegamos de novo, até o Cape de Gel, a ver se encontrávamos mais prezas. Porém foi em vão; fomos impedidos pelo vento, que, próximo da costa, nos era sempre contrário. À noite, véspera de Todos os Santos, uma tempestade nos levou da Barbaria para o lado do Brasil. Quando estávamos a 400 milhas da Barbaria grande, um cardume de peixes cercou o navio; apanhamos muitos com o anzol. Alguns, grandes, eram dos que os marinheiros chamavam Albakores. Outros, Bonitas, eram menores, e ainda outros chamavam Durados. Também havia muitos do tamanho do arenque, que tinham asas nos dois lados, como os morcegos, e eram muito perseguidos pelos grandes. Quando percebiam isso, saíam da água em grandes cardumes e voavam, cerca de duas braças acima da água; muitos caíam perto e outros longe a perder de vista; depois, caíam outra vez na água. Nós os achávamos freqüentemente, de manhã cedo, dentro do barco, caídos durante a noite, quando voavam. E são denominados na língua portuguesa – peixe voador.

Daí chegamos até a linha equinoxial onde reinava intenso calor, porque, ao meio dia, o sol estava exatamente a pino sobre as nossas cabeças. Durante algum tempo, de dia, não soprava vento algum; mas de noite, se desencadeavam, muitas vezes, fortes trovoadas, acompanhadas de chuva e vento, que passavam rápido. Entretanto tínhamos de velar constantemente, para que nos não surpreendessem, quando navegávamos a pano.

Mas, quando de novo soprou o vento, que se tornou temporal, durante alguns dias, e contrário a nós, julgamo-nos ameaçados de fome, se continuasse. Oramos a Deus, pedindo bom vento. Aconteceu então, uma noite, por ocasião de forte tempestade, que nos pôs em grande perigo, apareceram muitas luzes azuis no navio, como nunca mais tenho visto. Onde as vagas batiam no costado, lá estavam também as luzes. Os portugueses diziam que essas luzes eram sinal de bom tempo que Deus nos mandava, para nos consolar do perigo. Agradecíamos então a Deus, depois que desapareciam. Chamam-se Santelmo, ou Corpus Santon, estas luzes. Quando o dia raiou, o tempo se tornou bom, soprando vento favorável, de modo que vimos claramente que tais luzes são milagres de Deus.

Continuamos a viagem através do oceano, com bom vento. A 28 de janeiro houvemos vista de terra, vizinha de uma cabo chamado Sanct Augustin . A oito milhas daí, chegamos a um porto, denominado Prannenbucke (Pernambuco). Contavam-se oitenta e quatro dias que tínhamos estado no mar sem ter avistado a terra. Ali os portugueses tinham estabelecido uma colônia, chamada Marin. O governador desta colônia chamava-se Arto Koslio (Duarte Coelho), a quem entregamos os criminosos; e ali, descarregamos algumas mercadorias, que lá ficaram. Terminamos os nossos negócios neste porto, com o intuito de prosseguir viagem e tomar cargas.

Hans Staden
(1548)

Do livro: "Viagem ao Brasil", Capítulo II, Academia Brasileira de Letras, 1930, RJ.

http://www.blocosonline.com.br/literatura/autor_prosas.php?id_autor=3225&flag=internacional

sábado, 10 de novembro de 2012

Há 68 anos nascia Torquato Neto (poeta e jornalista brasileiro)

Cogito

eu sou como eu sou
pronome
pessoal intransferível
do homem que iniciei
na medida do impossível
eu sou como eu sou
agora
sem grandes segredos dantes
sem novos secretos dentes
nesta hora
eu sou como eu sou
presente
desferrolhado indecente
feito um pedaço de mim
eu sou como eu sou
vidente
e vivo tranqüilamente
todas as horas do fim.

- no livro "Os Últimos Dias de Paupéria", Max Limonad - Rio de Janeiro, 1973.
Biografia
Torquato Pereira de Araújo Neto nasceu em Teresina (PI), no dia 09 de novembro de 1944. Foi contemporâneo de Gilberto Gil no colégio em que estudou, em Salvador, tornando-se amigo do compositor e conhecendo também os irmãos Caetano Veloso e Maria Bethânia. Em 1966 mudou-se para o Rio de Janeiro, começando seus estudos de Jornalismo. Mesmo sem ter concluído o curso, iniciou-se na profissão trabalhando em diversos jornais cariocas, tendo criado e redigido a coluna "Geléia Geral" no jornal carioca "Última Hora". Um dos criadores do movimento tropicalista, é o autor de inúmeras letras de músicas de sucesso, entre as quais destacamos "Mamãe, Coragem", "Geléia Geral", "Domingou", "Louvação", "Pra dizer adeus", "Rancho da rosa encarnada" e "Marginália II".
Em 10 de novembro de 1972, suicidou-se deixando o seguinte bilhete: "Tenho saudade, como os cariocas, do dia em que sentia e achava que era dia de cego. De modo que fico sossegado por aqui mesmo, enquanto durar. Pra mim, chega! Não sacudam demais o Thiago, que ele pode acordar".
Em 1973, ocorreu a publicação póstuma de seu livro "Os Últimos Dias de Paupéria", organizado por Ana Maria Silva Duarte e Waly Salomão. Três anos depois, alguns de seus poemas foram incluídos na antologia "26 Poetas Hoje", organizada por Heloísa Buarque de Hollanda. Em 1997, foram publicados quatro de seus poemas na antologia bilíngüe "Nothing the Sun Could Not Explain", organizada por Michael Palmer, Régis Bonvicino e Nelson Ascher.
Fonte: Releituras
Site Oficial: http://www.torquatoneto.com.br/
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Retirado do mural do Facebook de Romério Rômulo Campos Valadares

Leninha, Rimbaud, Elisa, Ventura e Rogel

 

Falecimento de Torquato Neto (1972, Rio), Leninha

Falecimento de Arthur Rimbaud (1891, França) poesia prosa

Literatura

Poesia

 Temática lua: Elisa de Almeida Cunha

 Temática não ao racismo / orgulho negro, Adão Ventura

Prosa

 Coluna quinzenal de Rogel Samuel